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SOBRE O CADERNO DE ABRIL E OUTRAS COISAS

Vej o silêncio na rua de casas brancas todas iguais Um homem, de semblante servil, alinha garrafas de vidro com leite, ao lado das portas. A melodia elementar de um amolador estilhaça o silêncio. Pode ser domingo Ao fundo da rua, um muro alto separa duas escolas primárias Os sons de um lado e do outro não se misturam nem materializam. As meninas, os meninos, dois mundos paralelos e separados. O encontro acontece na rua, depois das aulas, ainda assim cada grupo com as suas brincadeiras. Os rapazes mais acriançados, atiram bolas para as meninas, e elas com risinhos nervosos, mal fingindo que não gostam desse jogo do eclodir da puberdade Foi antes. Um passeio num carro eléctrico amarelo, com o seu bivaque de militar na cabeça, a sobrar-me no tamanho. Sempre gostei de fardas. E gostei dele, homem com cara de anjo, Sem tempo na ampulheta do tempo para nos gostarmos mais. Fascina-me o objecto estranho do revisor para picar os bilhetes. Fascina-me tudo no revisor.
Mensagens recentes

CADERNO DE ABRIL - Canções Revisitadas - lançamento em Abril

  O Caderno de Abril é um livro que revisita canções que nos avivam memórias dos tempos escuros; canções de espanto e assombro em que o tempo ganha cores vibrantes de esperança; canções de quimeras e utopias. Uma biografia, uma crónica, um poema da existência de um homem banal, nos tempos que fazem a história.

UM CADERNO COM PALAVRAS

  Abanico Abantesma Abelharuco Abesoirar Abraço Abundância Acariciar Açoteia Acrobata Adeus Aerograma Afeiçoar Agrimensor Alfarricoque Alma Amor Anarquia Anjo Aperaltado Aresta Assombro Assombração Azul Beijo Bifanas Bonifrates Cachopa Calor Caos Deserto Desavindo Empatia Escrever Farol Hoje Gatafunhos Geografias Imaginar Jardim Liberdade Mão Mediterrâneo Melancolia Melro Metáfora Montra Morte Namorado Nascer Ódio Orelhudo Palavra Palmas Panegírico Patagónia Passarolar Piropo Poesia Proteger Quotidiano Roleta Separação Silêncio Sofá Sonho Utopia Vaguear Valdevinos Vida Voar   Os caligrafistas, ou calígrafos, que não são palavras bonitas mas de boa índole, são pessoas talentosas que se dedicam a embelezar as palavras. Um género de maquilhadores, de pintores de palavras, para gozo e alegria dos apreciadores e fruição do universo, pelo menos este, já que dos outros só em teoria e em sonhos. Ponha-se o tempo a andar para trás, 6000 mil anos. O aparecimento da escrita, no final do qua

O Cântico das Sereias

A fonte da vida está na conjugação certa dos elementos necessários. E depois, é no líquido primordial que se germina a vida, molda-se o desenho do ser e quando a obra está pronta, convida-se uma nova alma para tomar conta e dar um nome ao recém-criado. O mar Mediterrâneo foi nos tempos da aurora dos dias, um leito amniótico, berço de muitas espécies e homens, habitantes das suas margens e periferias.  Estes, prosperaram explorando os seus recursos naturais e viveram muito tempo em harmonia, vendo-se o aparecimento, o auge e a decadência de povos e civilizações, com as suas estruturas complexas, as suas sociedades, crenças, culturas e línguas. Os homens atravessaram esse mar interior e íntimo vezes sem conta, para praticarem as artes da pescaria, o comércio e as trocas, o transbordo de gentes e coisas, ou praticando a navegação dos aventureiros em busca de terras por descobrir. Um mar bonançoso com intempéries contidas, suave e feminino. Foi e ainda é, para muitas nações, o símb

ONDE ESTÁ O AMOR?

  Num lugar sem notícia, comunidade pouquíssima, ainda assim na aparência de viver feliz. Arremedo de sociedade aberta aos outros, ao forasteiro, não lhe faz perguntas, aceita-o. Como pode um desconhecido, fugido de algum horror, um pesadelo do mal, fazer-se anunciar contando todos os pormenores, quando desconhecendo as palavras certas, não as sabendo pronunciar e ser audível, preocupado que vem pela sobrevivência de procurar um local onde renasça a sua prosperidade, uma vida a recomeçar? Esta mulher veio e mal se deu por ela. Uma mulher com um olhar doce – ao olhar com atenção e pormenor, é afinal um olhar de sofrimento, como se por educação ela contivesse a dimensão do seu sofrimento, não o querendo revelar ao mundo -, trabalha sem se dar conta dela, protegida pela luz ténue de uma pequena loja numa rua quase sem moradores e movimento de vida, reduzida à sua expressão mínima. Na montra, óculo de salvação para o calor dos dias com sol, uma bandeira da Ucrânia. Seria outra band

AS CRUZES

  Tenho as malditas das cruzes que nem sei explicar bem; tenho bicos de papagaio, que até se ofendem, os ditos   - a minha médica de saúde, então! – de dizer que os tenho, e o que sofro. Até o meu marido, porque se calhar não lhe estou a pagar o dízimo em géneros como seria o esperado, não atende os meus queixumes e bate-me desalmadamente e mais por isso. Não sei se é mau-olhado, mas esperei dois anos e meio por uma consulta de um senhor doutor especialista e quando cheguei a esse dia, perguntou-me se tinha uma ressonância magnética. Eu não sabia que era preciso ter uma ressonância magnética para dizer ao mundo que tinha bicos de papagaio. E as dores que tenho e as dificuldades que isso me traz, pensei serem óbvias. Mas não. Reagendou nova consulta e pediu a dita ressonância, inserindo no sistema, porque o vi a teclar teclas no computador. Esperei e esperei e nada. Uns senhores do hospital sem me conhecerem sequer, disseram que eu não tinha condições para fazer a dita coisa de magn

Ceia de Natal

A Dona Adelaide tinha um Perú. Não era sempre o mesmo, mudava todos os anos, por alturas do Natal, mas nós não sabíamos. Agora que se pensa nisso, onde é que nos restantes dias, ela meteria o perú, , que não se dava por ele no pátio do prédio onde representávamos o papel de crianças - eramos muitos - e brincávamos, aproveitando todo o tempo da infância, que no futuro nunca mais seriamos vistos com bons olhos se brincássemos, na monotonia formal da idade dos adultos. A Dona Adelaide teria seguramente o seu perú numa das divisões da casa, como se fosse um animal doméstico, que estamos certos de que  seria. Há quem tenha papagaios, periquitos, lagartos, ela tinha um perú. Chegámos várias vezes, quando nos lembrávamos, de colar as orelhas à porta de casa de Dona Adelaide, a ver se captávamos sinais de vida do dito. Só na altura do Natal é que o animal dava contas de que estava vivo, saia à rua, quer dizer ao pátio e por aí andava uns dias, bastante descontraído, até que a Dona Adelaide